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Memórias de emigrantes 

 

 

Vêm quase todos os anos matar saudades da família, dos amigos, da Festa. A maior parte saíu nos anos 60, quando a penúria grassava e não se vislumbrava alternativas. Do outro lado do “rio atlântico”, os familiares  insistentemente, aliciavam-nos com fotos de automóveis, casas e luxos nunca vistos que a terra da promissão lhes proporcionava por muito trabalho e alguma sorte.

Quase todos encobriam sacrifícios e penares dos países de destino:  desconhecimento da língua, dureza do frio e do gelo, trabalhos de escravo a que se sujeitavam nos primeiros anos, até dar o salto para a cidade, para uma vida melhor.

Um dia destes confirmei estórias dessas com um picoense que rumou inicialmente para o Brasil, fugido à guerra colonial. Como em São Paulo não encontrou o desafogo desejado optou pelo Canadá. Hoje, como outros que para lá foram, bendiz aquele país multicultural pelas oportunidades que lhe proporcionou.

A segunda geração de emigrantes canadianos esqueceu, porém, as dificuldades dos pioneiros – homens que desbravaram terras geladas a troco de fome, frio, lágrimas, espezinhados nos seus direitos por patrões de “farms” sem escrúpulos que os tratavam como escravos.

“O meu sogro contava que o patrão, para além de não lhe pagar, não lhe entregava as cartas da mulher. Ela, coitada pobre, esperou tempos e tempos pela carta de chamada e só a conseguiu, através de um amigo aqui do Pico que recebia a correspondência na sua direção. Foi muito penar, ye!”
São muitos e semelhantes os relatos de maus tratos e injustiças, certamente desconhecidos das autoridades daquele país.

“O primeiro emprego que tive, depois de desembarcar em Montreal, foi num “farm”, longe de tudo. Até o combóio passava longe. Vivi ali alguns meses, numa pequena casa sem condições, junto dos animais. O patrão, com quem tinha contrato assinado, só me dava algum dinheiro de tempos a tempos e a comida era escassa. Para matar o tempo e a tristeza, trabalhava de madrugada até altas horas... Da família nem uma cartinha.

Eu estranhava, mas não sabia o que se passava. Pensei, pensei e num domingo, sem dizer nada ao patrão, saí de lá e lancei-me a pé, sozinho por aquelas matas medonhas, até à estação de combóio que ficava a uns bons quilómetros. Fui ter a Montreal, a casa de um amigo que viajara comigo no mesmo barco. Foi o que me valeu. A partir daí, comecei a ganhar algum dinheiro para pagar a dívida da passagem de avião e chamar a mulher e os pequenos. Foi muito penar, muito penar!”       

Se estas estórias fossem contadas, certamente envergonhariam o Canadá, país por todos considerado grande defensor dos direitos humanos.

Os que partiram, habituados à rudeza da vida, passaram uma esponja sobre as dificuldades que ultrapassaram com trabalho e luta e, após tantos anos, preocupam-se agora em afirmar-se na terra de origem, recuperando velhas casas e adegas com dimensões que enchem os olhos dos conterrâneos. São sinais do desafogo económico, da afirmação das capacidades que o país natal lhes negou.

Nesta época estival os emigrantes regressam por alturas da festa do padroeiro cuja fé os ajudou a superar as agruras da vida.

Este fim de semana, nas Lajes do Pico, dezenas de antigos baleeiros emigrados regressam e revivem tempos antigos, celebrações religiosas que pouco mudaram e constituem a matriz religiosa que os animou.

Há dezenas de anos, o Tomé que fazia piões, o Joaquim que também trabalhava na fábrica de conservas, o João Maurício, o Manuel Garcia, o José Vigário, o João Lelé, o Francisco Barbeiro e tantos outros, à proa dos seus botes, enlaçavam o andor de Nossa Senhora de Lurdes, à passagem da procissão, após o sermão da Pesqueira.

Muitos já partiram, mas os que ainda por aqui estão, repetem o mesmo gesto com a mesma veneração e respeito, suplicando bençãos, como se no dia seguinte tivessem de arrear os botes, após o foguete avisar: baleia à vista!

E nós, que guardamos na memória esses momentos, deixamos cair uma lágrima de saudade, reconhecendo quão grande é a fé destes homens e deste povo que, ao partir, levou na alma a fé, o amor à terra e os sentimentos do reconhecimento e do perdão.

 

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